A morte de Phil Spector neste domingo (17), aos 81 anos, vitimado pela Covid-19, levantou a questão de até onde podemos distinguir a obra da pessoa. O produtor norte-americano, que cumpria uma pena de 19 anos de cadeia pelo assassinato de sua namorada Lana Clarkson ocorrido em 2003, trouxe felicidade a milhões e milhões de pessoas mundo afora com os discos que produziu nos anos 60 e 70 - "Be My Baby", "You've Lost That Lovin' Feelin'", "My Sweet Lord", "Happy Xmas (War Is Over)", músicas que só pelo título já são imediatamente reconhecidas e evocam lembranças.
Phil Spector


Por outro lado, para que essas e inúmeras outras maravilhas ganhassem vida (o caixote "Back To Mono" com quatro CDs comprova isso) Spector certamente transformou a vida de muitas pessoas em um verdadeiro inferno com seu jeito tirânico. São histórias de abuso, sua ex-esposa Ronnie Spector sofreu horrores dentro e fora do estúdio, armas apontadas para músicos e uma personalidade que, antes considerada apenas excêntrica, acabou se mostrando bem mais problemática e perigosa.
Phil Spector
Phil Spector (Foto: Al Seib-Poo/ Getty Images))


Por outro lado, não se pode negar a do primeiro produtor superstar do planeta, aquele que era tão, ou mais importante, que os próprios artistas que apareciam nos selos dos discos. Suas "sinfonias adolescentes", como ele as chamava, ainda hoje são reverenciadas assim como sua maior criação: o "wall of sound" - ou parede sonora.

Gravando em mono e com a parca tecnologia da época, Spector criou discos únicos e de grande complexidade, ao juntar dezenas de músicos em um mesmo estúdio, criando uma massa sonora, em mono, que soava única nos rádios dos carros ou pequenas vitrolas onde as canções eram ouvidas.
Phil Spector


Spetor brilhou mesmo na primeira metade dos anos 60, também como compositor, especialmente no período que sucede a primeira onda do rock and roll e a chegada dos Beatles. Justamente uma época que era tida como "perdida" da música jovem. Sua derrocada teria início em 1966 quando aquela que considerava sua maior obra prima, "River Deep, Mountain High", na voz de Tina Turner (seu marido Ike foi creditado no disco mas não participou das gravações), fracassou nos EUA, chegando apenas no 88° lugar das paradas. Ainda que o single tenha se tornado um hit no Reino Unido, estava claro que uma era havia chegado ao fim.
Phil Spector


Phil acabaria encontrando suporte justamente nos Beatles. Ao contrário do que alguns veículos publicaram, ele não produziu diretamente a banda. Coube a ele a missão de dar alguma forma às sessões que resultaram no álbum "Let It Be". Ele escolheu as músicas, a sequência e também adicionou diálogos dos músicos entre uma música e outra - a gravação foi registrada para o documentário que chegou aos cinemas junto com o disco em 1970.

Em quatro canções, ele fez alterações de mixagem, e, no polêmico caso de "The Long And Winding Road", acrescentou uma série de orquestrações que desagradaram Paul McCartney - o músico chegou a ir embora de uma premiação quando soube que o produtor iria receber um prêmio pelo conjunto de sua obra.
Phil Spector


Se Macca ficou chateado, John Lennon e George Harrison não tiveram maiores problemas e contaram com ele produzindo, ou co-produzindo, seus álbuns solo mais celebrados - "Plastic Ono Band" (1970) e "Imagine" (1971), no caso de Lennon (além de uma série de singles e do disco com covers de canções dos anos 50, "Rock and Roll", de 1975), e "All Things Must Pass" (1970), no de Harrison.

Fora isso, os trabalhos foram raros, um disco polêmico com Leonard Cohen ("Death Of A Ladies Man", de 1977), outro com Dion (o hoje cultuado "Born to Be with You", de 1975) e um com os Ramones ("End Of The Century", 1980). Seu último trabalho foi o pouco ouvido "Silence Is Easy", disco de 2003, da banda britânica Starsailor, onde produziu duas faixas.

Spector foi condenado em 2009 e acabou morrendo na prisão. Um triste fim para um dos maiores inovadores da história do pop.

Ouça abaixo dez canções que tiveram a sua marca:

"To Know Him Is To Love Him" - The Teddy Bears
Spector fez parte deste trio, que chegou ao topo da parada dos EUA com esta canção, composta por ele, em 1958. Amy Winehouse era fã declarada da canções e a cantou em diversas ocasiões - nota: o título da faixa ("Conhecê-lo é amá-lo") foi inspirado na inscrição que estava na lápide do pai dele.



"Spanish Harlem" - Ben E. King
Ao lado de Jerry Leiber, Spector compôs esse verdadeiro standard do pop em 1960 (a produção ficou nas mãos de outros gênios da área, Leiber e seu parceiro Jerry Stoller).




"Be My Baby" - The Ronettes
Uma das maiores e mais longevas canções de todo o pop, esta marca o auge de Spector enquanto produtor e é o melhor exemplo do "wall of sound". Lançada no finzinho de 1963, ela chegou ao segundo lugar nos EUA.



"You've Lost That Lovin' Feelin'" - The Righteous Brothers

Outra canção fundamental para se entender as técnicas do produtor, essa faixa se tornou uma das mais tocadas na história, tanto nesta versão quanto nas diversas covers que foram feitas nas décadas seguintes. A música tem autoria de Barry Mann, Cynthia Weil e do próprio Spector.



"Unchained Melody" - The Righteous Brothers

Esse standard ganhou nova vida na voz dos "irmãos" Bill Medley e Bucky Heard (que canta sozinho). A faixa saiu pelo selo Philles, de Spector, mas era apenas o lado B do compacto com a esquecida "Hung On You" e foi produzida pelo próprio Medley, ao menos é o que ele sempre disse e o que é mais provável. Phil jogava toda a sua energia nos singles, pouco se importando com os lados B ou as músicas que apenas preenchiam os LPs. Obviamente, ele não gostou nada de ver essa "faixa menor" transformada em hit, menos ainda em um que atravessou gerações e ganhou uma força ainda maior quando usada na cena mais emblemática de "Ghost", o blockbuster espírita de 1990.



"River Deep, Mountain High" - Ike and Tina Turner

Como já dissemos no começo do texto, essa era a gravação que Spector fez com a missão de ser a sua obra-prima. Foram meses buscando a canção perfeita, a voz ideal e os melhores músicos disponíveis no mercado. A composição de Jeff Barry e Ellie Greenwich (o produtor também está creditado) era, de fato, fortíssima, e Tina Turner era dona da mais potente voz dos EUA (Aretha Franklin só mostraria seu verdadeiro potencial um ano depois, em 1967). Infelizmente, apesar de ser uma obra-prima, o single naufragou nos EUA e Phil nunca se recuperou do baque. A Philles ainda lançou mais cinco compactos depois desse, todos de pouquíssima repercussão, antes de encerrar suas atividades.



"Christmas (Baby Please Come Home)" - Darlene Love
Spector não era fã de álbuns, sua mentalidade era focada nos compactos, o formato favorito dos jovens na época, mas deixou ao menos um clássico inestimável para a posteridade. O disco de natal, "A Christmas Gift for You from Phil Spector", saiu em 1963 e é considerado o maior do gênero e dos raros que podem ser ouvidos depois do dia 25 de dezembro com o mesmo prazer. O disco tem 13 clássicos sazonais devidamente "Spectorizados" e uma canção original que se tornou classica por mérito próprio e sempre volta a ser ouvida quando o fim do ano se aproxima.



"Instant Karma" - John Lennon

Phil ajudou a produzir os álbuns "Plastic Ono Band" (curiosamente um disco totalmente básico, que vai na contramão de tudo que ele sempre fez), "Imagine" e "Rock and Roll" do ex-Beatle, além de alguns compactos. Este aqui é, ao lado de "Happy Xmas", os que melhor representam a união das sensibilidades de Lennon e sua mulher Yoko Ono, com as do produtor.



"My Sweet Lord" - George Harrison

Hit supremo do ex-Beatle presente em "All Things Must Pass", que também é forte concorrente a melhor disco solo feito por um ex-integrante do quarteto de Liverpool, que há cinquenta anos é ouvida ao redor do planeta. Apesar disso, a vontade por ouvir o disco sem os típicos exageros de Spector, que sempre usava muitos músicos e carregava as gravações com eco, sempre esteve presente, e em 2021, uma nova versão remixada do disco está com lançamento previsto.




"Do You Remember Rock 'n' Roll Radio?" - Ramones



A última grande produção de Phil foi o álbum "End Of A Century", lançado em 1980 pelo quarteto de Nova York. O quinto disco de estúdio da banda não goza do mesmo prestígio que os três primeiros discos deles, mas é um exercício dos mais interessantes.

O cenário visto nas gravações, foi de caos - era óbvio que uma banda com Dee Dee e Johnny Ramone na formação, dois legítimos "casca grossa", não ia aceitar os mandos e desmandos do produtor e muito menos deixar barato as suas ameaças, mesmo que elas envolvessem armas de fogo. O álbum se tornou o mais bem sucedido deles na parada de sucessos, em toda a carreira, o que, nesse caso, o 44° lugar, não significou uma grande virada rumo a aceitação comercial. Como um todo, ele também é um tanto irregular, mas seus momentos de brilho, como o single acima, são irresistíveis.

Para saber mais sobre Phil Spector, em particular seu aclamado álbum natalino, vale a pena ouvir essa edição do Podcast "Discoteca Básica", toda dedicada ao trabalho: