Gabriel O Pensador
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Biografias e resumos de carreiras de artistas, atletas, cientistas, bruxos, santos, terroristas, políticos, putas, ou qualquer outro tipo de pessoas que se tornaram ou foram tornadas famosas, normalmente contêm alguns erros e falsas informações que vão sendo tão repetidos, ouvidos e lidos e relidos, que se transformam em quase-verdades indiscutíveis capazes de durar até mais do que a própria permanência do ilustre biografado na Terra. Espero que este esboço de biografia não contribua para isso e não espalhe nenhuma informação incorreta que possa ser copiada e publicada continuamente por aqueles que têm preguiça de checar a origem dos textos. Sim, mas neste caso eles podem relaxar, eles e todos os outros que por algum motivo estejam lendo isto agora, pois desta vez quem está escrevendo o resumo (!) é o próprio sujeito e objeto da narrativa. É claro que nem por isso os erros deixarão completamente de existir, mas vou tentar caprichar na memória e na clareza daquilo que eu quiser (ou me obrigar a) lembrar e esclarecer. O resto os jornalistas competentes e incansáveis podem sempre me ajudar a recordar e divulgar.

O nome
Bom, contrariando dezenas de matérias que quase mudaram meu sobrenome para Zontino ou Zantino por causa de um único erro de datilografia numa revista conhecida, eu me chamo Gabriel Contino (pelo menos até aqui eu não tenho nenhuma dúvida). O nome italiano vem da turma do avô do meu pai, um fotógrafo que trocou o sul da Itália pelo do Brasil no finzinho do século XIX (ou comecinho do XX) e acabou se casando com duas gaúchas e fazendo seis filhos com cada, ao que tudo indica com uma de cada vez. O primeiro do seu segundo casamento veio ao mundo em Alegrete em 1911 e trocou o Rio Grande do Sul pelo De Janeiro logo após ter perdido a mulher, com quem tivera dois filhos em Porto Alegre, para uma terrível doença chamada leptospirose. O mais novo destes dois, Miguel, tinha só um aninho e ficou com uma tia até os cinco, quando veio finalmente morar com o pai e sua nova companheira em Copacabana. Cresceu, passou para medicina na Universidade do Estado da Guanabara (hoje UERJ) e um dia conheceu uma linda menina tijucana chamada Belisa.

A garota era a mais velha dos três filhos do casal de cariocas Eneida e Affonso - uma bela e inteligente professora de escola pública e um mulatão atlético de quase dois metros que era policial do Exército, sem por isso deixar de ser poeta e sambista e tocar (até hoje) viola, pandeiro e piano.

O ritmo do Affonsão pode ter vindo no sangue negro da família de sua mãe, mas a veia poética - se é que a poesia pode ser hereditária - foi herança do seu pai pernambucano, que quando era vivo escrevia e recitava poemas de amor para a futura avó da Belisa, em Niterói, no estado do Rio, ou melhor, da Guanabara.

Eneida, por sua vez, trazia nos genes uma certa mistura portuguesa e espanhola, com mais uma dose de sangue gaúcho, já que sua mãe tinha vindo de um lugarzinho chamado Santo Antônio da Patrulha pra viver com um tenente carioca, mesmo sem o consentimento dos seus velhos, que se recusaram a assistir ao casamento... Que rolo! Se isso era pra ser um resumo, imagina eu contando a estória completa! Mas se não fossem todos esses detalhes aparentemente insignificantes este texto não estaria aqui, nem você, e eu então muito menos.

O namoro entre Miguel e Belisa, isso, o namoro! Bem, corria tranquilo e calmo até que uma cartela de pílulas anti-concepcionais (ainda uma novidade na época) foi descoberta pelos pais da moça em sua bolsa e quase arruinou o romance. Rolou um estresse na família, separam o casal por um tempo, mas Miguel conseguiu sobreviver à ira do Affonsão e da dona Eneida e fez questão da mão da gata em matrimônio. Um ano depois os dois se casaram " e viveram felizes para sempre". Mas, talvez traumatizados pela confusão causada pelas pílulas, eles optaram pela camisa-de-vênus como modo de evitar uma gravidez. Num belo dia foram fazer um passeio de carro até a praia de Jaconé, no caminho de Saquarema, e lá mesmo no banco traseiro do Fusca de cor preta e placa EA-9845, começaram a fazer amor, ou sexo, para ser mais explícito. A tarde estava bonita e tentadora e os dois não tinham levado camisinha, só daquela vez.

Cinco meses depois, com 19 anos de idade e cinco meses de gestação, a estudante Belisa foi internada com a bolsa d'água estourada e uma gravidez de alto risco, no mesmo hospital onde o marido recém formado fazia residência médica para se especializar em oftalmologia. Enquanto os médicos diziam sem cerimônia que o bebê poderia nascer cego ou surdo, se saísse com vida, a jovem ficou lá de molho esperando, até que numa Quarta-feira de Cinzas, de madrugada, em quatro de março de 1974, o bebê não aguentou mais a demora e, talvez não exatamente por pressa, mas por algum desses motivos que só os fetos de sete meses e meio conseguem entender, resolveu dar o ar de sua graça. E por falar em graça, seria batizado como Pablo se a mãe não tivesse gostado tanto do livro Cem Anos de Solidão, do colombiano Gabriel García Marquez, lido durante a internação de 42 dias.

Na noite do parto inesperado, o obstetra responsável não estava de plantão e quem teve que assumir foi um jovem obstetra residente, que graças a Deus foi feliz no que deve ter sido o primeiro parto daquele tipo da sua carreira. Mas o drama ainda não terminava ali no nascimento, pois o menino de dois quilos e cem gramas nasceu com uma série de problemas e teve que ir direto pra CTI neo-natal. Pra você ter uma idéia, existe uma pontuação que os médicos dão aos bebês conforme as suas características logo após o parto: o APGAR, que avalia as condições de aparência, peso, respiração e etc. A nota do Gabrielzinho, numa escala de zero a dez, foi dois.

Pra encurtar um pouquinho esta estória, foram duas semanas na incubadora com aparelhos respiratórios e tudo a que tinha direito, sem visitas além das do pai e da mãe, que demorou uns longos dias até poder pegar o filho no colo pela primeira vez, rapidamente, ainda na CTI. O menino apresentava uns preocupantes tremeliques, mexendo involuntariamente os braços em estranhos impulsos que pareciam o movimento de um abraço no vazio. Suspeitavam de um tumor no cérebro, ou edema, e chamaram uma equipe do renomado Hospital Jesus, especializada em prematuros com problemas neurológicos, que trouxe sua parafernália usada em testes com esses bebês, incluindo uma corda, onde Gabriel ficaria pendurado para ver se tinha força e reflexo suficientes nas mãos, como uma criança normal. Tinha. Quando conseguiu se pendurar, todos aplaudiram na sala - Belisa, Miguel e seus colegas, da oftalmologia e de todo o Hospital Pedro Ernesto (em Vila Isabel), que tinham se juntado pra assistir ao desafio e torcer. Porém, a jovem mãe de 19 anos ainda estava preocupada com a previsão sinistra dos médicos sobre o futuro do garoto: "ou vai morrer ou vai ficar com graves distúrbios mentais".

Bom, dos males o menor! Pelo menos o coitado não morreu! Quanto à mente perturbada fica a dúvida no ar, que permanece até hoje e talvez para sempre. Mas o fato é que ele resistiu, e sua mãe notando isto resolveu resgatá-lo de lá, mesmo contra a vontade de um dos médicos, que acabou consentindo em dar alta, com a condição de que os pais assinassem um termo de responsabilidade. Assinaram e se responsabilizaram, o levando pra continuar o tratamento lá na casa da Dona Eneida, onde o garoto desfrutou seu primeiro mês de liberdade. Ainda fazia aqueles movimentos malucos com os braços, e a última coisa que os médicos tinham achado sobre tal "tique" nervoso é que poderia ser fruto de uma carência de magnésio no sangue. Conseguiram então umas ampolas de sulfato de magnésio, que vieram de São Paulo, e cuja injeção o próprio Miguel tinha que lhe aplicar diariamente, com a mão querendo tremer e suando, não tanto pelo tamanho da agulha, mas pelo do seu frágil bebezinho - seu peso tinha caído pra dois quilos depois de nascer e era conferido diariamente numa balança no quarto onde dormia, e a cada grama que engordava a casa inteira vibrava em comemoração.

Gabrielzinho melhorou daquele troço, mas pintou uma hérnia que o obrigou a encarar uma cirurgia no terceiro mês de vida. Tranquilo, sem neurose. Encarou aquilo numa boa, o moleque. Depois foi crescendo e Miguel e Belisa se divorciaram quando ele tinha seis meses de idade. Ficou morando com ela e contando com a ajuda da Dona Eneida e de seus filhos Affonsinho e Beatriz, que agora viam a irmã trocar o emprego de balconista que tinha numa loja por uma vaga modesta de estagiária no Jornal do Brasil. Ganhando menos, mas pra fazer o que queria.

Engatinhou, balbuciou suas primeiras palavras, e cada gesto simples desses era um alívio pra toda a família, assim como deve estar sendo pra você que está lendo isso e não aguenta mais esse monte de descrições médicas, químicas, físicas e psicológicas. Anda logo Gabriel! Gabriel andou. E passou por vários bairros com as mudanças de Belisa, quando ela já podia bancar o seu próprio aluguel e se mudou, e mais tarde se casou e se mudou mais umas vezes… Mas a vovó estava (e está) sempre sediada na Tijuca, no mesmo endereço onde Belisa crescera, na Rua Carvalho Alvim. Outro ponto fixo de referência que surgiu um pouco depois, e que seria na verdade um interessante contraponto para a sua vida meio nômade com a mãe, o irmão Tiago e os diferentes padastros que viriam com o tempo, foi o apartamento onde o pai fixou-se em Copacabana com a segunda esposa. Aquele pequeno lar não era nem um pouco careta, no sentido ruim da palavra, mas servia como um retrato de uma família mais típica e fácil de entender: O pai, a madrasta, os dois irmãos que pintaram (Joana e o caçula Fernando), o mesmo apartamento, a mesma mesa de jantar, os mesmos passeios, os mesmos amigos do pai, as mesmas diversões, as mesmas implicâncias da madrasta, que talvez fossem interpretadas assim por Gabriel mais pelo ciúme que ele tinha do pai do que pela "chatice" da mulher em obrigá-lo a arrumar a cama quando ia dormir lá com eles nos fins de semana - um sim, outro não e em outros talvez. Aquela rotina que duraria cerca de vinte anos no mesmo lugar e com as mesmas qualidades e defeitos acabou sendo muito importante na infância, na adolescência e até na juventude do garoto, que mudou de escola várias vezes e de casa e de padrasto muitas outras.

Esse negócio de dividir a mãe com os padrastos era mil vezes mais complicado do que a relação com a esposa do pai, não só por sentir muito mais ciúmes da mãe, naturalmente, mas também porque ela trabalhava demais (enquanto o pai ele sempre encontrava nos dias de folga), e ainda por cima havia o irmão, que tinha chegado quase quatro anos depois dele pra aumentar mais ainda o ciúme. Irmão 24hs era só o materno, e por isso foi com este irmão que Gabriel brigou muito enquanto eram crianças, coisa que começou ainda na época da Rua Uruguai, quando a mãe ficou alguns anos morando com o jornalista Tarcísio Baltar, o pai do Tiago, o que certamente deve ter gerado o questionamento infantil do tipo "por que o pai dele mora aqui e não o meu?". E tome briga com o irmão, reclamação e castigo.

Até aí tudo bem, pois Gabriel era muito pirralho e hoje nem se lembra direito dos detalhes, mas houve uma fase mais difícil, quando tinha uns dez ou onze anos e realmente sofreu com as confusões que via rolarem entre a mãe e um outro marido, em um outro lar em outro bairro. Nessa altura ele já tinha feito até terapia infantil com uma psicanalista, mas foi na escola Senador Correia que começou a exercitar sua rebeldia pra curar ou esquecer esses conflitos. Ficou um ano no colégio, que era muito liberal, cheio de filhos de artistas e de alunos que virariam artistas no futuro. Como em quase todo colégio, também havia a turminha aprendiz de "marginal". Entre as aulas de artes e as artes que a pequena e atuante "banda podre" do colégio o ensinava, foi ali que Gabriel aprendeu algumas coisas erradas, mas também se interessou pela música. Chegou a fazer umas cinco musiquinhas de rock, com letra e melodia (apesar de não tocar nenhum instrumento), e uma delas foi inspirada no episódio do flagrante nas Lojas Americanas, onde tinha sido pego por um segurança furtando uma caixa de giz de cera durante o horário de recreio - é que todos os alunos podiam sair da escola e comer pão de queijo na padaria da praça, ou fazer o que bem entendessem. Este episódio que virou música entrou para a história do Senador Correia, pois a loja quis explicações do diretor da escola, que não gostou nem um pouco da gracinha e resolveu tornar as regras um pouco menos liberais pra todo mundo: a partir do dia seguinte, quem quisesse colocar os pés na rua na hora do recreio deveria trazer a autorização por escrito dos pais. E tudo isso foi por culpa do "Pixote" (ninguém o chamava de Gabriel), que depois de dois dias suspenso teve medo de ser levemente linchado pelos colegas, punição extra que felizmente não sofreu.

No ano seguinte sua mãe o mandou para o Andrews, uma escola mais rígida e tradicional, onde o garoto ficaria até o fim da oitava série incrivelmente sempre entre os primeiros da classe, apesar de uma dose de bagunça inevitável, mas já sem roubar (nem matar, estuprar ou qualquer coisa parecida, muito menos na hora do recreio). A verdade é que a mudança de colégio coincidiu com sua ida para São Conrado, já aos doze, onde pôde trocar a diversão de pichar muros pelo rabiscar das ondas e das rodas do skate, e rapidamente deixou de ser "Pixote" para virar o "Pequeno". Ele tinha começado a pegar onda um pouco antes, quando ainda morava na Lagoa, mas foi mesmo no chamado Cantão ali da praia, ao conhecer e fazer amizade com a galera da favela da Rocinha, que acabou ficando muito mais viciado.

Por favor, não confundam as coisas nem entendam errado: quando eu digo "viciado" é pura e somente viciado no esporte, e não em outras coisas que o preconceito nos ajuda a associar automaticamente à palavra "favela". Talvez se tivesse continuado com alguns pequenos delinquentes de classe média, que eram os seus amigos mais íntimos de poucos meses antes, poderia aí sim passar por problemas com drogas junto com eles; o que também não quer dizer que na turminha da Rocinha não existisse nenhum coleguinha de praia que fosse mais tarde se tornar viciado, ou até em alguns casos, traficantes e defuntos precoces. Mas o que importa é que aconteceu e não o que podia ter acontecido com o Pequeno, e o que aconteceu foi coisa boa. Ele se juntou com a galera que só queria saber de surfar no canto da praia, andar de skate no half-pipe do morro, andar de bicicleta no asfalto do Pepino, jogar "bobinho" no condomínio e vídeo-game Atari em sua casa, onde morava com a mãe, o irmão Tiago e o novo padrasto.

Esse era um ator da TV Globo, muito famoso, assim como a Belisa, que nesta altura já tinha apresentado os principais telejornais da emissora e conduzia seus próprios programas na TV Bandeirantes. Gabriel morou ali até os quinze, e a enorme variedade de ambientes e de pessoas que conheceu nessa fase ajudou a definir sua personalidade e a sua postura diante da vida. Vida que era vista e vivida como uma estrada imprevisível, cheia de entradas e saídas abertas, desvios, mudanças, avanços, retornos, atalhos, acidentes…; rua clara, beco escuro, túnel e ponte, onde não se anda em círculos e até o chão parece estar se movendo em silêncio. No caminho de sua vida passavam os rebeldes ou pacatos colegas do mundo da classe média - com seus largos horizontes projetados nas paredes internas dos muros, os muros protetores e certinhos que os deixavam com vontade de pulá-los ou quebrá-los de uma vez - às vezes reprimidos e cheios de conflitos, confusos com a imprecisa descoberta de uma estranha e constrangedora "obrigação" de ser feliz (como os companheiros de escola ou das inesquecíveis idas à Colônia de Férias de Miguel Pereira, onde rolava muito esporte, brincadeira e "azaração", com direito a choradeira emocionada no final); e passavam nesse caminho de sua vida a impetuosidade irreverente da fala em voz alta do morro e a pureza e a esperteza malandra dos seus gestos, modestos e ao mesmo tempo imponentes, nas bocas sorridentes de quem sente que precisa usar os dentes e usa, mordendo, mastigando e engolindo as frustrações e escondendo um sonho ou dois que ainda resistem de forma gostosa debaixo da parte mais doce da língua (como a garotada e marmanjada da Rocinha e também dos barracos ou casebres construídos na encosta do condomínio, sendo um deles o do melhor amigo "Janjão", que ganhou o apelido por fazer dupla com o Pequeno, feito os inseparáveis Janjão e Pequeno do desenho animado); e também passou nesse pedaço da estrada da vida de Gabriel um interessantíssimo elenco de amigos da mãe e do padrasto, famosos ou não, de todos os tipos, contrastando e se igualando com a turminha de amigos anônimos e igualmente interessantes do pai e da madrasta em Copacabana. Na mesma estrada onde passava, por outro lado e no mesmo sentido, sua própria família materna com seu jeito mais simples e conservador de família tijucana.

Gabriel, mesmo sem se dar conta, ficava observando as diferenças e principalmente as semelhanças entre aquelas várias espécies de figuras, assim como deve ter percebido, quase inconscientemente, as relações possíveis e impossíveis entre um baile funk adolescente numa garagem de ônibus com a presença do tráfico e uma excursão de teenagers brasileiros ao mundo de Disney com a presença do Mickey.

No meio disso tudo, no fundo da cena, havia sempre alguma trilha sonora. A música estava sempre no ar, na vitrola ou no rádio, no carro ou no quarto, na festinha no playground de alguém ou num pagode improvisado num quintal. Talvez em função da já citada variedade de ambientes e personagens que fazem parte dessa estória, seu acompanhamento musical era quase tão variado quanto podia ser num país com tantos gostos diferentes como o nosso. E isso é gostoso lembrar, porque a música dura mais na nossa memória do que as cenas embaladas por ela. E as raízes do som permanecem fincadas pra sempre em qualquer coração que um dia bateu no seu ritmo.

Na infância, misturava samba-enredo com MPB e outras coisas tocadas os cantadas pelos pais de brincadeira, mas nada que se destacasse e o marcasse realmente, até um pouco mais tarde, quando aconteceu o sucesso fenomenal de Michael Jackson com o Thriller, para o fascínio de crianças do mundo todo, como se fosse um Harry Potter da época ou algo parecido. A febre tomou conta do prédio onde morava o Pixote, no Humaitá, e dos outros prédios em volta, onde os garotos começaram a se juntar para fazer passos de dança e dali a pouco estavam todos rodando de costas no chão. Era a descoberta do break, a dança inovadora da cultura hip hop, que ninguém sabia ainda o que era, mas já dava pra notar que era "chocante". Foi o tempo de ir ao cinema assistir ao Beat Street - na onda do break algumas vezes, e depois pegar no vídeo pra ver outra vez. Um mundo totalmente novo era mostrado e saboreado, não só em suas expressões corporais e vocais ou musicais, mas nos muros! Justamente quando o "Pixote" surgia pra sei lá porque razão idiota sujar os muros e ônibus com suas pichações, esse filme divulgava a arte proibida dos grafites coloridos nas paredes e nos trens de Nova York. Não há como negar que isso foi mais um fator de atração do moleque ao que hoje todos chamam de cultura hip hop - mas diga-se de passagem: pichação é uma coisa (lamentável), já a arte do grafite é uma outra totalmente diferente.

E nas rodas de break às vezes pintava um som novo. Gabriel não conseguia rodar de cabeça pra baixo e nem fazer o "moinho de vento", que eram passos difíceis, e na verdade não se empenhou muito neste sentido. Preferia tentar traduzir algumas letras das músicas do filme, e também de outras obras como Breakdance, Breakdance Special e o que mais aparecesse, aproveitando pra tentar executar uns "scratches", mexendo escondido no prato giratório da vitrolinha indefesa da mãe. Conhecia então o rap, a música falada e rimada em cima das bases com batidas eletrônicas, nas vozes de Grandmaster Flash, Kurtis Blow, Doug E Fresh, e até do iniciante Ice-T, e já curtia entender o que os caras cantavam e a estrutura das rimas, mas não sabia o nome de ninguém nem tinha um rapper preferido. Depois andou ouvindo muito o chamado funk dos bailes cariocas da época, que era bem melhor do que o que é feito hoje, no que se refere à qualidade da produção musical, e a maioria das músicas era americana mesmo, ou versões em português em cima das bases instrumentais originais. A fonte no fundo era mais ou menos a mesma, a nova música negra americana, a batida eletrônica do hip hop, mas de uma vertente específica, conhecida mais na frente por aqui como Miami Bass. Quando saiu de Humaitá para morar na Lagoa, Gabriel não tinha mais amigos envolvidos com o break ou o rap. E continuou ouvindo tudo que ouvia desde antes, e que não tinha deixado de curtir só por causa de sua admiração pelo som do Beat Street e etc.

Legião Urbana, Titãs, Blitz, Paralamas do Sucesso e Ultraje a Rigor, só pra citar os mais ouvidos no rádio e em disco, fizeram parte desse mosaico auditivo junto com tantos outros que estavam ou estiveram estourados nas rádios, como o Lobão, o Léo Jaime, várias bandas do nosso rock dos anos 80, além de tudo mais que pintasse nos festivais de TV ou nas trilhas de novela ou de cinema e agradasse. Desde Fábio Júnior com seus 20 e poucos anos até Camisa de Vênus e o "eu não matei Joana D'arc", passando por um disco do Queen aqui, um do U2 ali, outro do The Cure acolá e por aí ia. Os presentes que o menimo Gabriel mais gostava de receber eram revistinhas em quadrinhos e discos, embora não ganhasse tantos discos assim, mas gostava, principalmente por volta da época do primeiro Rock in Rio, quando juntou alguns LPs de coletâneas diversas a seus velhos discos de criança Os Saltimbancos, do Chico Buarque, e Arca de Noé, do Vinicius de Moraes. Antes de ganhar suas primeiras bolachas, já ouvia as do pai e as da mãe, por iniciativa própria ou não, conhecendo assim um pouquinho de nada de MPB, só de leve, coisas como Gonzaguinha, Caetano, esses monstros sagrados, que só iriam entusiasmar os seus ouvidos e tocar pra valer uns aninhos depois.

Nessa salada maluca, sempre que possível Gabriel prestava mais atenção às letras do que ao resto, fossem as comédias musicadas do Eduardo Dusek ou o som mágico das guitarras do Dire Straights, traduzindo como podia o que era em inglês e entendendo como podia o que era em português, o que deve explicar o fato de ele nunca ter tido vontade de aprender a tocar um instrumento qualquer. Gostava de escrever redações no colégio e de desenhar, às vezes inventando uma ou outra estória em quadrinhos com textos. Volta e meia fazia suas próprias versões para letras de músicas que ouvia, e nessa brincadeira acabou criando também algumas músicas inéditas, com letra e melodia, que gravou numa fitinha cassete. Isto foi quando estudava no Senador Correia, onde cursou a quinta série, e uma das músicas foi a tal inspirada na pitoresca "ocorrência" das Lojas Americanas. Esta música ficou na cabeça de alguns colegas do Pixote, que a inscreveram no Sarau do colégio no ano seguinte, quando ele já tinha ido pro Andrews. E os desgraçados não fizeram nem um esforço para localizá-lo e avisá-lo do concurso, o que foi uma pena, pois só mesmo muitos anos mais tarde Gabriel ficou sabendo que a sua música tinha sido a grande campeã do Sarau, cantada e tocada por seus ex-colegas, que pelo menos não deixaram de dizer pra galera que aquela era a música do Pixote, se bem que a letra já deixava isso bem claro.

Uma curiosidade: uma das músicas concorrentes, que falava sobre o sumiço (fictício) da chave do colégio e havia sido criada e apresentada por uma menina chamada Ana Célia, ficou em segundo lugar na votação, que era feita através da medição (visual e auditiva mesmo) dos aplausos. Quando anunciaram a vitória da composição do Pixote, essa menina se lembrava vagamente do moleque, pois já o tinha visto num dia do outro ano, quando quis saber quem era o culpado pela mudança nas regras restringindo a sagrada saída no recreio e lhe apontaram o próprio, que distraidamente jogava seu futebol. Nem ele nem ela poderiam imaginar que no futuro se conheceriam, se apaixonariam e formariam um casal, e que entre outras coisas maravilhosas como beijo, cafuné e criança, iriam passar a fazer também música juntos. Coisas do destino.

Além da música vencedora, Gabriel tinha feito outras quatro, sendo que uma delas, chamada Prefeito vagabundo, também ficou entre as primeiras colocadas no mesmo Sarau. E ninguém avisou nada pro Pixote. Sacanagem!

Talvez se tivesse sabido do sucesso dessas musiquinhas que tinha feito aos onze anos em forma de brincadeira, Gabriel continuasse pensando mais em música aos doze, aos treze e aos quatorze, mas não. Nessa altura o Pequeno tinha ido pra São Conrado e só queria surfar e praticar esportes, sem deixar de escrever redações elogiadas na escola, mas não muito mais do que isso. Ouvia muita música, como sempre, principalmente do Run DMC e dos Beastie Boys, numa mesma fitinha cassete que fazia os alto-falantes pedirem arrego. Ouvia tanta coisa e gostava de muita também, mas aquela estória de fazer musiquinhas tinha sido mesmo um momento isolado e esquecido até então; e mesmo que ainda tenha chegado a fazer umas rimas satirizando colegas na sala de aula e fazendo os amigos cairem na risada, ou alguma outra coisa parecida em São Conrado que o Janjão até hoje diz que lembra e o Pequeno nem consegue mais achar na memória, a verdade é que a música não era nem de longe um objetivo na mente do garoto. Mas também não havia nenhum outro grande objetivo por lá. Era cedo para isso.

Fonte: Site Oficial