Amália Rodrigues
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Poema dos Olhos da Amada

Amália Rodrigues


Poema Dos Olhos Da Amada-Vinicius De Morais

Oh, minha amada
Que os olhos teus

São cais noturnos
Cheios de adeus
São docas mansas
Trilhando luzes
Que brilham longe
Longe nos breus

Oh, minha amada
Que olhos os teus

Quanto mistério
Nos olhos teus
Quantos saveiros
Quantos navios
Quantos naufrágios
Nos olhos teus

Oh, minha amada
Que olhos os teus

Se Deus houvera
Fizera-os Deus
Pois não os fizera
Quem não soubera
Que há muitas eras
Nos olhos teus

Ah, minha amada
De olhos ateus

Cria a esperança
Nos olhos meus
De verem um dia
O olhar mendigo
Da poesia
Nos olhos teus


Abandono-Amália Rodrigues

Por teu livre pensamento
Foram-te longe enterrar
Tão longe que o meu lamento
Não te consegue alcançar
E apenas ouves o vento
E apenas ouves o mar

Levaram-te a meio da noite
A treva tudo cobria
Foi de noite numa noite
De todas a mais sombria
Foi de noite, foi de noite
E nunca mais se fez dia

Ai! Dessa noite o veneno
Persiste em me envenenar
Oiço apenas o silêncio
Que ficou em teu lugar
E ao menos ouves o vento
E ao menos ouves o mar



Formosinha De Elvas - Natália Correia

Faz-me por ela morrer e traz-me
desesperado alguém que dá gosto ver
e de corpo bem talhado, por quem a morte
hei-de ter como cervo lanceado que se vai
do mundo a perder da companhia das cervas
Antes ficasse sandeu ou me embruxassem
com ervas no dia em que me apareceu a tal
formosinha de Elvas
Mais a morte me convém, pois da sensatez
me queixo de quem desejo não tem de matar
o meu desejo e me parece tão bem que cada
vez que a vejo me lembra a rosa que vem
saindo por entre as relvas
Antes ficasse sandeu ou me embruxassem com
ervas no dia em que me apareceu a tal
formosinha de Elvas

O Objecto-Ary Dos Santos

Há que dizer-se das coisas
o somenos que elas são
Se for um copo é um copo
se for um cão é um cão
Mas quando o copo se parte
e quando o cão faz ão ão?
Então o copo é um caco
e um cão não passa dum cão

Quatro cacos são um copo
quatro latidos um cão
Mas se forem de vidraça
e logo foram janela?
Mas se forem de pirraça
e logo forem cadela?
E se o copo for rachado?
E se o cão não tiver dono?
Não é um copo é um gato
não é um cão é um chato
que nos interrompe o sono

E se o chato não for chato
e apenas cão sem coleira?
E se o copo for de sopa?
Não é um copo é um prato
não é um cão é literato
que anda sem eira nem beira
e não ganha para a roupa

E se o prato for de merda
e o literato de esquerda?
Parte-se o prato que é caco
mata-se o vate que é cão
e escreveremos então
parte prato sape gato
vai-te vate foge cão

Assim se chamam as coisas
pelos nomes que elas são




O Dia Da Criação

O Dia Da Criação
Rio de Janeiro, 1946
Macho e fêmea os criou
Bíblia: Gênese, 1, 27

Hoje é sábado, amanhã é domingo
A vida vem em ondas, como o mar
Os bondes andam em cima dos trilhos
E Nosso Senhor Jesus Cristo morreu na Cruz para
nos salvar

Hoje é sábado, amanhã é domingo
Não há nada como o tempo para passar
Foi muita bondade de Nosso Senhor Jesus Cristo
Mas por via das dúvidas livrai-nos meu Deus de todo
mal

Hoje é sábado, amanhã é domingo
Amanhã não gosta de ver ninguém bem
Hoje é que é o dia do presente
O dia é sábado

Impossível fugir a essa dura realidade
Neste momento todos os bares estão repletos de
homens vazios
Todos os namorados estão de mãos entrelaçadas
Todos os maridos estão funcionando regularmente
Todas as mulheres estão atentas
Porque hoje é sábado

Ii

Neste momento há um casamento
Porque hoje é sábado
Há um divórcio e um violamento
Porque hoje é sábado
Há um homem rico que se mata
Porque hoje é sábado
Há um incesto e uma regata
Porque hoje é sábado
Há um espetáculo de gala
Porque hoje é sábado
Há uma mulher que apanha e cala
Porque hoje é sábado
Há um renovar-se de esperanças
Porque hoje é sábado
Há uma profunda discordância
Porque hoje é sábado
Há um sedutor que tomba morto
Porque hoje é sábado
Há um grande espírito de porco
Porque hoje é sábado
Há uma mulher que vira homem
Porque hoje é sábado
Há criancinhas que não comem
Porque hoje é sábado
Há um piquenique de políticos
Porque hoje é sábado
Há um grande acréscimo de sífilis
Porque hoje é sábado
Há um ariano e uma mulata
Porque hoje é sábado
Há uma tensão inusitada
Porque hoje é sábado
Há adolescências seminuas
Porque hoje é sábado
Há um vampiro pelas ruas
Porque hoje é sábado
Há um grande aumento no consumo
Porque hoje é sábado
Há um noivo louco de ciúmes
Porque hoje é sábado
Há um garden-party na cadeia
Porque hoje é sábado
Há uma impassível lua cheia
Porque hoje é sábado
Há damas de todas as classes
Porque hoje é sábado
Umas difíceis, outras fáceis
Porque hoje é sábado
Há um beber e um dar sem conta
Porque hoje é sábado

Há uma infeliz que vai de tonta
Porque hoje é sábado
Há um padre passeando à paisana
Porque hoje é sábado
Há um frenesi de dar banana
Porque hoje é sábado
Há a sensação angustiante
Porque hoje é sábado
De uma mulher dentro de um homem
Porque hoje é sábado
Há a comemoração fantástica
Porque hoje é sábado
Da primeira cirurgia plástica
Porque hoje é sábado
E dando os trâmites por findos
Porque hoje é sábado
Há a perspectiva do domingo
Porque hoje é sábado


II

Por todas essas razões deverias ter sido riscado
do Livro das Origens, ó Sexto Dia da Criação
De fato, depois da Ouverture do Fiat e da divisão
de luzes e trevas
E depois, da separação das águas, e depois
da fecundação da terra
E depois, da gênese dos peixes e das aves e dos
animais da terra
Melhor fora que o Senhor das Esferas tivesse
descansado
Na verdade, o homem não era necessário
Nem tu, mulher, ser vegetal, dona do abismo
que queres como as plantas, imovelmente e nunca
saciada
Tu que carregas no meio de ti o vórtice supremo da
paixão
Mal procedeu o Senhor em não descansar
durante os dois últimos dias
Trinta séculos lutou a humanidade pela semana inglesa
Descansasse o Senhor e simplesmente não existiríamos
Seríamos talvez pólos infinitamente pequenos de
partículas cósmicas em queda invisível na terra
Não viveríamos da degola dos animais e da asfixia
dos peixes
Não seríamos paridos em dor nem suaríamos o pão
nosso de cada dia
Não sofreríamos males de amor nem desejaríamos
a mulher do próximo
Não teríamos escola, serviço militar, casamento civil
imposto sobre a renda e missa de sétimo dia
Seria a indizível beleza e harmonia do plano verde
das terras e das águas em núpcias
A paz e o poder maior das plantas e dos astros em
colóquio
A pureza maior do instinto dos peixes, das aves e
dos animais em cópula
Ao revés, precisamos ser lógicos, freqüentemente
dogmáticos
Precisamos encarar o problema das colocações morais
e estéticas
Ser sociais, cultivar hábitos, rir sem vontade e até
praticar amor sem vontade
Tudo isso porque o Senhor cismou em não descansar
no Sexto Dia e sim no Sétimo
E para não ficar com as vastas mãos abanando
Resolveu fazer o homem à sua imagem e semelhança
Possivelmente, isto é, muito provavelmente
Porque era sábado

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