Jayme Caetano Braun

Hermano

Jayme Caetano Braun


Seu nome - nunca se soube,
nem ele mesmo sabia.
Numa noite muito fria
deu ĂŽ de casa na estĂąncia.
Vinha de longa distĂąncia
dos fundos da noite grande,
mas nos galpÔes do Rio Grande
isso tem pouca importĂąncia.

Ninguém lhe perguntou nome
nem lugar de procedĂȘncia
que vinha de outra querĂȘncia
se via no sufragante,
um buenas noites vibrante
de campeira fidalguia
e a galponeira franquia:
- ... Apeie... e chegue pra diante!

O chapéu com barbicacho,
negra e comprida melena,
pele queimada, morena
sem luxos na vestimenta,
bombacha de brim - cinzenta,
adaga e faca Ă  cintura
e um olhar misto ternura
com lampejos de tormenta.

Mi nombre es Hermano, hermanos
disse - enquanto chimarreava
Ă  peonada que escutava
mui atenta - por sinal,
e no mesmo tom casual,
palmeando a cuia de mate,
afirmou como arremate:
- Soy de la banda Oriental!

Desde essa noite o Hermano
ficou na estĂąncia - ajudando,
que o Ă­ndio que anda cruzando
nĂŁo se ajusta como peĂŁo,
vai ficando no galpĂŁo
- a velha casa reiĂșna -
onde os pĂĄrias sem fortuna
buscam calor de fogĂŁo.

Sempre alegre e prestativo,
naquele meio dialeto,
era um gaĂșcho completo,
de ação pronta e destorcida,
demonstrando em qualquer lida
que era desses campechanos
que jĂĄ nasceram vaqueanos
dos mil atalhos da vida.

Depois que se enforquilhava
no seu basto castelhano
nem o bagual mais tirano
sacava o Ă­ndio dali.
Aos gritos de ibi-bi-bi,
ia surrando cruzado
pulando mais que dourado
nas enchentes do IbicuĂ­!

Cantava uma flor de truco,
Ă  velha moda gaĂșcha
e num jardeio - qĂŒe pucha,
sempre saĂ­a primeiro,
corredor mui tarimbeiro,
desses com sete sentidos
que até parecem nascidos
nas cruzes do parelheiro.

Laçava... e como laçava,
de a pé como de a cavalo,
tanto fazia no pealo,
ser sobre-lombo ou cucharra;
companheiro numa farra
dos que nĂŁo refugam nada
e que mĂŁo aveludada
pra pontear uma guitarra.

Quando cantava se via
naquele olhar machucado
o pensamento empacado
nalguma reminiscĂȘncia,
talvez a velha querĂȘncia
longe na barra pampeana...
talvez alguma paisana
desgarronada na ausĂȘncia...

Numa milonga macia,
numa cifra - num estilo
nunca se viu como aquilo
tamanha fidelidade,
ora olfateando saudade
numa nostalgia langue;
ora farejando sangue
num berro de liberdade.

Quando os dedos se perdiam
entre a quarta e a bordona
pareciam vir Ă  tona
barbarescsa ressonĂąncias,
clarins furando distĂąncias
num Ășltimo chamamento
e laços cortando ventos
no amanhecer das estĂąncias.

Depois amaciava o tranco
com patas aveludadas
e evocava madrugadas
com luas e meias-luas;
pĂŽr-de-sĂłis nas pampas nuas
com romances proibidos
nos pelegos estendidos
para divĂŁs das chiruas!

SĂĄbado encilhava o baio
rumbeando aos ranchos da estrada,
beber ternura comprada,
onde os pĂĄrias vĂŁo beber,
pois nesse meio viver,
o Ă­ndio sem parador,
nunca encontra o bebedor
da sanga do bem querer.

Foi num Domingo de tarde,
ao retornar de uma andança,
a noite caĂ­a mansa
e o paisano vinha sério,
o pensamento gaudério
perdido longe... distante,
sem saber que, logo adiante,
ia enfrentar o mistério.

Quando embicava no passo
que faz fundo na invernada,
jĂĄ na boca da picada,
o baio parou-se um gato,
bufou com espalhafato,
como prevendo tragédia,
o índio bancou na rédea,
jĂĄ meio dentro do mato.

Ouviu um - morre bandido
dos covardes, de emboscada,
jĂĄ na primeira trovoada
planchou-se o baio cabano.
Baleado embora, o Hermano,
ao se apartar do lombilho
vinha puxando gatilho
dum trinta e oito orelhano.

Seis tiros dados no rumo
e um alarido de morte.
Depois, a sangueira forte
e um frio que vinha do miolo
mas o Ă­ndio era crioulo,
teve um sorriso esquisito:
- nĂŁo ia morrer solito,
pra o taura, Ă© sempre um consolo.

E ajoelhado, atrĂĄs do baio,
parceiro de mil jornadas,
jĂĄ de pupilas vidradas
pela morte repentina,
passou-lhe a mĂŁo pela crina,
como quem nana criança
e um arrepio de vingança
escureceu-lhe a retina.

Com trĂȘs ou quatro balaços
bordando a pele morena,
nem ouvia a cantinela
e o fogonear dos balaços,
meio de arrasto - c'os braços,
rumbeou para o tiroteio:
- galo fino - no careio,
coloreando de puaços...

Era um gaĂșcho Oriental
e um Oriental nĂŁo recua,
honra a tradição charrua
e nem a morte o abala,
no prĂłprio sangue resvala
mas segue no mesmo tranco,
agora, de ferro-branco,
porque jĂŁ nĂŁo tem mais bala.

Sente que a vista falta
e uma bĂĄrbara dormĂȘncia,
mas resta-lhe uma incumbĂȘncia
nessa noite de Domingo,
se entrevera e - no respingo,
mete a adaga em carne humana,
gritando em voz insana:
- esta les doy por mi pingo!

Com vinte e tantos balaços,
escoriaçÔes e facadas,
as roupas esburacadas,
jĂĄ cego - e peleando aos gritos,
como a confirmar os gritos
dalgum ConfĂșncio campeiro:
- Covarde morre ligeiro,
o taura, morre aos pouquitos.

TrĂȘs mortos - mais o Hermano
e o baio - morto encilhado,
nĂŁo foi identificado
nem um sĂł daquele trio,
o restante, se sumiu,
na imensidade campeira,
deixando apenas sangĂŒeira
e o choro do vento frio.

Nunca se soube o motivo
daquela barbaridade,
nem a prĂłpria autoridade
nem gente da vizinhança.
Foi com certeza, vingança,
feita por gente mandada.
Restam na velha picada
quatro cruzes por lembrança.

Seus nomes nunca se soube,
trĂȘs cruzes sem inscrição
defronte - noutro munchĂŁo,
uma cruz tem nome: Hermano.
Descansa nela o paisano
que usava melena preta,
um poncho azul de baeta,
montava um baio cabano.

E lĂĄ estĂĄ a cruz de pau ferro
palanqueando o castelhano,
Ășltimo adeus do Hermano,
na tarde triste e cinzenta,
ao ver a cruz - representa
que a gente vĂȘ - na lonjura,
seu olhar, misto ternura,
com lampejos dde tormenta.

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